Fora de hora

ImagemSabe, eu sonhei com você minha adolescência inteira. Foi amor à primeira vista, não tinha jeito. Quando chegou a hora, abri mão de muito por sua causa. E no começo, apesar de difícil, foi tudo lindo. Eu te amava incondicionalmente e pra sempre. Mas você foi cruel comigo, me deixou sozinha demais, triste demais, pobre demais. Fiquei abandonada, com vontade de sair correndo, sem olhar pra trás. E foi o que fiz.

Costumo dizer que a melhor coisa da minha vida foi eu ter ido a seu encontro e a segunda melhor foi ter te abandonado. Não te quero constante na minha vida nunca mais, só que agora que tá pra fazer um ano que eu te deixei, preciso te dizer: bateu uma saudaaade de você, São Paulo…

Mala, cuia e despedida

Quando eu vim para São Paulo, Steve Jobs estava vivo e o iPad não existia, iPhone era para poucos, Orkut não era peça de museu, Twitter era só para os mais descolados e quase ninguém usava o Facebook, que era muito chato. A Dilma não era presidente, a linha amarela do metrô não funcionava, o Justin Bieber não tinha lançado a própria biografia, o Bin Laden estava vivo. A blusa xadrez não estava na moda, a Sandy não era devassa, o mundo não tinha 7 bilhões de habitantes.

Se tanta coisa no planeta mudou em menos de dois anos, imagina eu! Definitivamente, sou outra pessoa. Fiz coisas das quais não me orgulho – fui maledicente, rancorosa e chorona. Mas tantas outras de inflar o peito de alegria – fiz amigos, aprendi lições e a perdoar.

Aos 15 anos, quando vi São Paulo do alto de um prédio pela primeira vez, decidi que queria viver aqui, um dia e para sempre. Queria saber como era ser e estar nesta cidade, com glamour, avanço e sons. Aos quase 24, consegui. E conheci outro lugar, mais real, mais concreto, mais só. E agora, aos 25, decidi que o para sempre teria que acabar.

Não vivi aqui nem metade do que sonhei que poderia. Mas também nem metade do que vivi eu sequer sonhei que poderia (deu pra entender?). Fiz e desfiz mitos, criei e reforcei laços, valorizei o que não observava, caí e me levantei. Chorei muitas vezes. Gargalhei outras tantas. Cresci (e engordei também…).

Agora volto para casa, com mala, cuia e saudade. Saio na hora certa, sem mágoas e com um sorriso constante tocando as orelhas. Um alívio misturado com a certeza de dever cumprido. Uma saudade de quem me tornei, do que vivi, de quem conheci. E um agradecimento sem fim a quem me acolheu, me entendeu, me surpreendeu. A São Paulo e a cada pedacinho dela que levo guardado na memória, o meu muito obrigada e um até logo!

Eu e São Paulo – Bodas de papel!

Hoje, dia 25 de janeiro, exatamente no dia do aniversário de 457 anos de São Paulo, completo UM ANO nesta cidade maluca. Nem tinha me tocado de que cheguei aqui num feriado, quando a famosa terra da garoa comemorava mais um ano de vida e eu chegava para começar uma nova vida.

Um ano, quem diria. Bodas de papel! E, como em todo casamento, nossa relação teve altos e baixos. Cheguei cheia de esperança e sonhos, entrei em crise umas muitas vezes, chorei outras tantas, me emocionei. Já quis abraçar a cidade inteira de uma vez e guardar a Avenida Paulista numa caixinha, só pra ter ao meu alcance todo dia.

A primeira vez que pisei aqui não fiz como o Caetano, chamando “de mal gosto o que vi”, pelo contrário. Fiquei literalmente boquiaberta com a grandiosidade dos prédios ao vê-los do alto de um terraço no, sei lá, vigésimo andar. Eu tinha 15 anos e só levei daqui a promessa de que voltaria pra valer. E voltei.

Há 12 meses, quando vim para ficar (e fui super bem recebida por uma amiga que me abrigou), a história era outra. Mudança radical, saudades e lembranças deixadas para trás. Tinha vindo atrás de um sonho. Ainda não sei bem qual ele é, mas estou descobrindo aos poucos. Ao longo desse ano tive muito tempo para pensar e mudar de ideia. E como eu gosto de pensar enquanto caminho pela Paulista

Em São Paulo vivi e aprendi tantas coisas que nem sei se vou me lembrar. Assim de relance me vem à mente o jeito “mano” de falar, o “meu” encaixado em toda a frase em tom de interjeição que hoje insiste em saltar da minha boca sem eu pedir. E o “às quintas ou sextas-feiras” que aqui se diz “de quinta”, “de sexta”?! “Balada”, “ponto de ônibus”, “cOmida, “magina” também foram incorporados ao meu vocabulário, antes tão brasiliense. “Embaçado” quase saiu algumas vezes, mas me recusei a deixar.

No início, me fascinava com as ruas, as roupas, até os ônibus. Devagarzinho fui me acostumando, achando tudo quase normal. Fui a uma Virada Cultural, conheci restaurantes deliciosos, a Vila Madalena e o samba rock – acreditem, do jeito que ele é aqui, só existe aqui mesmo. Fui a vários bares e, ainda assim, continuei sem beber. Ouvi Lady Gaga e rock alternativo umas trocentas vezes, involuntariamente, mas nem doeu.

Fiz amigos incríveis e queridos, fui à José Paulino comprar roupas, à 25 de Março comprar bugigangas, à Liberdade comer yakisoba, só umas duas vezes ao Mercadão Municipal – a trabalho -, uma à Sala São Paulo e nenhuma ao Museu do Futebol, ao Masp ou à Pinacoteca. Vi o último jogo do Palmeiras no antigo Palestra Itália (uma derrota de 1 x 0 para o Boca, mas valeu), ao teatro SÓ três vezes e a poucos grandes shows – todos de graça! Mas ao cinema passei a ir mais, com promoções que só existem aqui.

Reclamei do calor insuportável em fevereiro, do frio congelante em maio, das chuvas intermináveis desde dezembro. Mesmo morando ao lado do melhor forró daqui (MESMO!), passei a frequentá-lo bem menos que na minha terra. Coloquei um piercing na orelha, cortei o cabelo por 40 REAIS, passeei no Ibirapuera e voltei a pé. Comecei a conviver – bem – com DOIS cachorros dentro de casa.

Escrevi para uma revista feminina e outra infantil, depois consegui um emprego para escrever sobre política. Revi velhas amizades, dei abrigo a outras, me endividei usando o cheque especial, comprei um fogão, um ferro de passar roupa, um ventilador, uma cama de casal e um espelho. Consegui uma casa exatamente ao lado do trabalho e me livrei dos engarrafamentos tipicamente paulistanos. Entrei na academia, engordei vários quilos, não aprendi a cozinhar nada além de macarrão.

Me viciei no Twitter, depois no Facebook e comecei a assistir Friends da primeira temporada. Fui ao litoral um dia só, quando estava chovendo. Quase me apaixonei umas quatro vezes – nenhuma deu certo. E aceitei que talvez eu não sirva pra isso mesmo. Passei a dormir muito mais tarde, fiquei mais solitária por querer – fiz do meu quarto uma ilha. Chorei de saudade de casa, mas não quis voltar. Pensei em ir embora algumas vezes, mas não quis voltar. Tive outras crises, alguns momentos de euforia, outros de melancolia. Nunca aprendi a relaxar.

Mas, relembrando todos esses momentos agora, pelo menos uma certeza eu tive: durante essas 8.760 horas que fui uma paulistana forasteira, juro, fui muito feliz! Que venham outros 365 dias nessa cidade que, sim, eu amo tanto!

A verdadeira (infeliz) tradição

Nesta semana fui ao Mercado Municipal de São Paulo para uma pauta e aproveitei para comer um tradicional sanduíche de mortadela (foto). Foi a terceira vez que estive por lá. Na primeira, em 2008, era turista, passeava com amigos da faculdade e comi um pastel de bacalhau muuuito salgado.

A segunda vez foi há cerca de seis meses, por causa de um exercício do Curso Abril. Uma oficina ministrada por editores da revista Bravo! sugeria que fôssemos a um ponto turístico da capital e descobríssemos uma pauta diferente por lá para um texto mais literário. Nem o sanduíche de mortadela nem o pastel de bacalhau. O que me chamou a atenção naquele momento foi algo que estava de fora do Mercadão e, infelizmente, também era bem fácil de se encontrar. Abaixo, o resultado (escrito em fevereiro de 2010):

Pomar ao ar livre
Nas proximidades do Mercado Municipal, as frutas que parecem não servir mais são degustadas por quem não pode ser exigente na escolha da comida
Adriana Caitano

Às quatro horas da manhã, Reginaldo Henrique de Almeida, 29 anos, acorda em algum canto da cidade de São Paulo. Não importa onde ele tenha dormido, o destino é sempre o Mercado Municipal, no centro antigo. Tenta chegar bem cedo para encontrar as melhores e mais bonitas frutas e hortaliças que vão compor seu desjejum. Cantarolando uma canção qualquer, com olhar criterioso, as mãos sujas e o polegar em carne viva, analisa e apalpa uma a uma, e, no fim das contas, leva quase todas. A procura tem hora para acabar. Às oito horas, quando o Mercado começa a ficar movimentado, ele vai embora.

Todos os dias, 350 toneladas de alimentos circulam pelo Mercado Municipal. A distribuição começa às sete da noite. Os caminhões que vêm da roça encostam no estacionamento próximo à entrada dos fundos e as caixas de frutas e verduras são carregadas até as lojas atacadistas, que ficam do outro lado da rua. Nesse trajeto, muita coisa cai no chão. Outro tanto é selecionado ainda nas carretas pelos carregadores. Às vezes o que sobra vai para o lixo. Outras vezes vira adubo na própria roça.

Mais uma triagem é feita pelos distribuidores, que repassam a mercadoria aos feirantes de rua e aos do Mercado. Domingos Cássio, dono de distribuidora, garante que não há desperdício. “Se jogamos fora é porque está muito ruim mesmo, ninguém comeria”, diz. Reginaldo come. E não se importa se o que achou estava mergulhado numa poça de esgoto, num saco de lixo ou era sobrevoado por moscas. Garante que nunca passou mal.

O ex-pedreiro segue a mesma rotina há um ano. Vive nas ruas desde que saiu de Pindamonhangaba, interior paulista. Há 12 anos roubou uma garrafa de uísque de um mercado e ficou uma semana preso. O processo foi arquivado, mas a ficha continuou suja. No início de 2009 foi para a capital à procura de emprego. Trabalhou em uma obra por seis meses.

Quando tentou continuar, a ficha suja o impediu. Não conseguiu mais uma vaga. Passou a viver da venda de latas encontradas nas ruas. E teve que aprender a pedir. Comida, nunca dinheiro. “Pra mim é uma vergonha ter dois braços e duas pernas e não querer trabalhar, prefiro revirar o lixo”. É do mesmo lugar que sai boa parte de sua alimentação. Depois de selecionadas, Reginaldo lava as frutas e verduras em algum bar. Às vezes consegue sal e óleo e faz uma salada. Se acha muitos tomates aproveitáveis, lava, coloca em uma caixa e vende do lado de fora do Mercado.

Lá dentro a mercadoria é bem diferente. Ameixas, pêssegos, carambolas, pitaias da Indonésia, sapotis do Amazonas estão sempre impecáveis. Parecem desenhadas delicadamente por um artista e exibidas com o cuidado de um curador de arte. Reginaldo já tentou entrar para pedir aquelas que não se enquadram no padrão de beleza. Mas foi impedido. O vendedor Delson Ramos conta que as sobras vão para casas de caridade cadastradas na prefeitura, que recolhem as doações em todas as bancas. Os pedintes não têm vez. “Se damos uma vez, eles viram clientes e acham que somos obrigados a dar sempre”, reclama.

Reginaldo se contenta com as que acha no chão, em volta do Mercado. Com a sacola preta na mão, segue para um abrigo temporário onde toma banho e tem direito a um almoço. Às seis da tarde tem que voltar para a rua. Vende as latas, procura mais algumas, se ajeita em um canto qualquer e dorme cedo para não se atrasar na ida à feira do dia seguinte. Mas essa rotina está prestes a ser interrompida. A passagem de volta para Pindamonhangaba que ganhou do serviço social da prefeitura já está marcada. No dia oito de fevereiro vai para casa limpar a ficha policial. Depois pretende voltar para São Paulo, não para colher frutas nas esquinas, mas para trabalhar de verdade.